Debate 'Da Economia À Autonomia: A Mulher como Protagonista'
Lateral Galeria, 17 de maio de 2025
com intermediação de Camila Alcantara
1. “O que é cuidar?” / “Do que estamos falando quando falamos de cuidado?”
“Pra mim, cuidar é se comprometer com a manutenção da vida — não só no sentido físico, mas também emocional, simbólico. É um gesto de presença, atenção e continuidade. Minha referência de cuidado é a minha mãe. Desde pequena, vi nela alguém que doava tempo, energia e afeto em várias direções: para a irmã, os alunos, o marido, eu… Isso foi moldando meu olhar. Na minha trajetória artística, o cuidado aparece como uma investigação das estruturas que sustentam o que é invisível, cotidiano, essencial. Falo de cuidado como trabalho, como afeto, como resistência.”
2. “A economia do cuidado costuma acontecer no invisível. Como essa invisibilidade impacta nossas vidas e as estruturas sociais?”
“A invisibilidade do cuidado é uma forma de apagamento. É um trabalho que sustenta tudo, mas que raramente é reconhecido como tal. Isso recai principalmente sobre as mulheres, sobretudo mulheres periféricas, negras. No meu trabalho, eu tento trazer o invisível à tona. Às vezes são materiais frágeis, outras vezes são gestos repetitivos, formas que evocam cuidado manual, tempo investido. É uma forma de dar visibilidade simbólica a algo que o sistema insiste em esconder.”
3. “Autonomia financeira e cuidado são compatíveis?”
“Essa é uma tensão central nas discussões sobre trabalho e gênero. O cuidado, historicamente atribuído às mulheres, é visto como um trabalho ‘natural’, e por isso não remunerado ou subvalorizado. Isso impacta diretamente a autonomia financeira de quem cuida — muitas vezes, mulheres precisam abrir mão de oportunidades profissionais para assumir esse papel, ou são empurradas para jornadas duplas e triplas. A compatibilidade entre cuidado e autonomia financeira só é possível quando há políticas públicas que redistribuam esse trabalho: creches, licenças parentais igualitárias, reconhecimento formal do trabalho doméstico, acesso a direitos trabalhistas. Sem isso, continuamos em um sistema que força escolhas injustas e sobrecarga individual.”
4. “Estamos vivendo uma virada de consciência em torno do tema?”
“Acho que o tema tem ganhado visibilidade, sim, especialmente com a pandemia, que escancarou quem cuida de quem, quem sustenta o dia a dia. Nos feminismos contemporâneos, vejo um esforço de reconceituar o cuidado como algo político, coletivo e não apenas uma questão privada ou feminina. Mas ao mesmo tempo, ainda é muito difícil ver isso se traduzir em políticas públicas efetivas. No íntimo, nas famílias, também noto mudanças, embora lentas. Acho que estamos num processo de reeducação coletiva.”
5. “No campo simbólico — artes, cultura, narrativas — o cuidado está ganhando espaço ou ainda é romantizado?”
“A arte tem um poder imenso de criar novas narrativas sobre o cuidado. Mas ainda vejo muito a romantização — o cuidado como sacrifício, como natural às mulheres, como algo belo, mas não estruturante. Ele é muitas vezes representado como algo nobre, feminino, quase espiritual — o que esvazia sua dimensão de trabalho, conflito e desgaste. No campo da arte, o desafio é deslocar o cuidado do lugar de doçura e sacrifício e tratá-lo como prática coletiva, ética relacional e resistência cotidiana. Isso implica também repensar as próprias estruturas do mundo da arte — quem cuida de quem dentro dos ateliês, das galerias, das instituições?”
Da maquiagem à memória:
o cuidado como política e estética na obra de Mari Sperandio
A produção de Mari Sperandio emerge como um campo de fricção entre o íntimo e o coletivo, entre o corpo e a estrutura, entre a delicadeza e o esgotamento. Seu gesto artístico é, antes de tudo, um gesto de cuidado — mas não o cuidado romantizado, higienizado ou apaziguador. O que vemos em suas obras é o cuidado como trabalho, como repetição exaustiva, como sobrecarga histórica, como construção política de um corpo que insiste em existir, mesmo quando esgarçado.
Utilizando materiais que habitam o cotidiano feminino — maquiagem, lenços umedecidos, luvas descartáveis, lençóis hospitalares — Mari desenha uma cartografia visual que tensiona os limites entre o banal e o simbólico. Suas obras dialogam diretamente com a tradição da arte confessional e da arte feminista, ecoando artistas como Mona Hatoum, Mierle Laderman Ukeles, Ana Mendieta e Lygia Clark, especialmente quando pensadas pela chave da corporalidade expandida e da performance do cuidado.
Há na sua pesquisa uma atenção obsessiva ao gesto mínimo. Se Mierle Laderman Ukeles, nos anos 1970, redefiniu o que poderia ser entendido como "trabalho artístico" ao performar suas tarefas domésticas como arte, Mari desloca esse gesto para os resíduos do cuidado: o lenço usado, a luva manchada, o batom gasto. Não é apenas a ação que importa, mas também os rastros deixados por ela. Há uma poética da sobra, daquilo que, ao final do dia, permanece sobre a pele, no pano, no chão.
O uso da maquiagem como matéria pictórica é, por si só, um movimento de resistência semântico-material. A maquiagem, historicamente associada ao embelezamento e à performance do feminino para o olhar externo, aqui é subvertida: vira tinta, mancha, borrão, cicatriz. Em trabalhos como "Flores para ela" e "Bem-me-quer", Mari convoca a dimensão cerimonial da maquiagem, mas devolve ao espectador sua face mais crua: um símbolo que, ao invés de cobrir, revela.
Há também uma dimensão política no modo como a artista constrói suas séries. Obras como "Schlampe" e "Você não acha que isso é ser muito mulher?" escancaram os discursos de violência simbólica e emocional que atravessam o corpo feminino. A ironia cortante dos títulos funciona como um mecanismo de exposição e denúncia. Nesse sentido, Mari aproxima-se de artistas como Regina José Galindo ou Teresa Margolles, que também lidam com a exposição crua da violência sobre corpos vulneráveis, embora Mari o faça por vias mais sutis e materiais.
As fotografias e instalações apontam para uma corporeidade ausente, mas sempre insinuada. As dobras do lençol, as marcas do batom, a costura feita à mão: tudo sugere um corpo que esteve ali, cuidando ou sendo cuidado, ausente ou exausto. O corpo como vestígio, como ausência performativa, faz com que suas obras acionem no público um campo de memória involuntária — algo que nos remete às discussões de Georges Didi-Huberman sobre o visível e o indizível na representação da dor e da memória.
No campo expandido da arte contemporânea brasileira, sua pesquisa também dialoga com práticas de artistas como Bru Novaes, nas reflexões sobre intimidade e arquivo afetivo, e com as obras de Lenora de Barros, no uso de materiais do cotidiano feminino para questionar os papéis de gênero.
Mari Sperandio articula, em seu percurso, uma estética da insistência: insistir na cor, na camada, no traço que repete e se acumula. Insistir também na memória, no toque, no detalhe. Seu trabalho é um lembrete poderoso de que o cuidado não é apenas um ato de carinho, mas também um campo de tensão, política e, muitas vezes, de dor. Seu olhar transforma o banal em linguagem, o efêmero em documento e o desgaste em potência estética.
Se há uma lição que sua obra nos oferece, é a de que cuidar também é saber olhar: para os pequenos gestos, para os restos que ficam e para as histórias que os objetos silenciosamente carregam.