O ônibus já atravessava o viaduto Dona Paulina quando começou a chover. Desacelerou e parou no ponto de frente pra catedral da Sé. Desci.
As gotas eram tão grossas que deviam fazer buracos muito visíveis nas nuvens acima de mim.
O cheiro da chuva no asfalto quente sempre me fez pausar e sorrir. Tem algo de muito magico na chuva.
O caminho pra casa é curto e breve. Mas, ontem, antes mesmo de chegar na Conselheiro Furtado, eu já estava ensopada.
Era uma dessas chuvas que só quem já esteve em São Paulo num mês de março conhece. Elas criam rios que correm pelos meio-fios. Às vezes unem, em poucos minutos, as calçadas com as ruas. Parece até que toda aquela água não poderia vir do céu. Parece até que é a terra quem expira mares por baixo do asfalto.
Sua.
Ou chora.
Enquanto a água fria já escorria por dentro da minha roupa e criava pequenas piscinas nas minhas meias, eu pensava nos lençóis freáticos inflados por dentro da terra. E pensava nas massagens que o caminhar da gente faz na terra.
Foi pensando nas veias da terra que me lembrei das minhas.
Minhas veias sempre contam boas histórias. Pra não alongar muito essa leitura, deixo a maioria delas pra depois.
Ontem, na chuva, me lembrei de que minha mãe dizia que quando eu era um bebê eu não chorava. Que eu abria a boca e gritava, franzia a testa e acordava um prédio todo, mas que nenhuma lágrima saia de nenhum olho.
Secos.
Talvez eu só chorasse porque eles estavam secos.
Minha mãe, que sempre encontrou coisas muito estranhas em mim, me levou à pediatra.
(Um dia, ela fez eu ir ao médico porque eu estalava muito todos os ossos do corpo. Hoje em dia só estalo um ombro e outro tornozelo.)
A pediatra disse parecer que meu canal lacrimal era muito fininho e que por isso meu olho não lacrimejava.
A solução parecia ser a estimulação do canal por meio de massagens.
Hahahaha que situação...
Lá vai a família ficar massageando os olhinhos do bebê que não sabe chorar.
Parece que funcionou. Depois de algumas seções de massagem feitas por mindinhos paternos, meu canal lacrimal se abriu. Foi ali que comecei a chorar propriamente como deveria.
E digo que aprendi muito bem.
Hoje choro nos livros, nos filmes, nas propagandas de margarina, nas noites de outubro, nas tardes de junho, nas chuvas de março.
Talvez eu devesse voltar à doutora Regina pra descobrir como fechar esse canal. Por uma válvula redutora, talvez uma torneira, sei lá.
Segundo minha prima, a doutora Regina já se aposentou a uns 20 anos. Fiquei chocada com isso, eu ainda tenho um livro que ela me emprestou quando eu era criança. Era Pollyanna. Precisava devolver, antes que eu decida reler e acabe chorando.
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