Cão Mago
Vivi quase dois anos no Equador.
Nunca tive a pretensão de morar em Quito. Foi algo que apenas aconteceu.
Em 2018, coloquei na cabeça que iria viajar. Botei uma mochila nas costas e fui. A ideia era partir do Uruguai e chegar ao México em 6 meses.
Qualquer um que me conheça um pouco sabe que isso é uma missão fadada ao fracasso.
Após dois anos eu só tinha chegado até o meio do caminho. Eu me demoro muito na vida.
Em Quito, eu fazia um curso de fotografia, trabalhava com fotografia e tinha um namorado. Músico, não fotógrafo.
Era muito comum a gente pegar o carro no final de semana e ir visitar algum lugar incrivelmente lindo. Qualquer parque ecológico com cachoeiras que a gente ouvisse falar, íamos.
Normalmente as viagens eram de um dia. Bate e volta. Isso porque ele sempre tinha evento, show, ensaio, aos finais de semana. Eu adorava.
Lembro-me de sair de casa ainda muito cedo para descobrir Papallacta. Às vezes ele dirigia, às vezes eu. Nessa viagem, nós revezamos. Ele foi e eu voltei dirigindo.
O que particularmente me incomoda na direção noturna é que as luzes dos faróis dos carros que vem de encontro me machucam muito os olhos, minha cabeça dói e eu acabo forçando a vista pra enxergar.
Como muitas vezes as estradas no Equador só possuem uma faixa e já era noite quando voltávamos, eu colocava muita atenção naquela estrada.
E foi naquele dia que presenciei um milagre.
Estava eu, no volante, subindo a montanha. A região era um pouco mais residencial ali, apesar de ainda muito rural. Do outro lado da pista vinha um caminhão, descendo. E no meio dela, um cachorro. Sentado, meio na chuva, meio sem se importar com a estrada. Parecia um ótimo lugar para se estar.
Enquanto meu namorado cantava, eu endurecia. Mano do céu. O cachorro. Ele, que compreendia razoavelmente bem o português, não acompanhou meu raciocínio desesperado.
Tudo foi muito rápido. O caminhão, ao se aproximar do pobre cão, fez meu coração chegar aos ouvidos. E logo no instante imediatamente anterior ao toque do cão com o pneu, o cachorro magicamente se transformou em sacola plástica, e bem diante dos meus olhos, flutuou, em movimentos circulares, pra mais perto de mim.
Milagre: Acontecimento extraordinário, incomum ou formidável que não pode ser explicado pelas leis naturais.
Deslumbramento: turvação da vista causada por excesso de luz, brilho ou por outros fatores.
"¿Qué paso?" me perguntava ele, ainda tentando entender.
Para não explicar que eu enxergava tão mal a noite que via nitidamente um mamífero carnívoro no lugar de um saco de lixo, narrei, então, o que era real para mim.
O perrito, muito sábio, prevendo que seria abruptamente esmagado pelo caminhão, havia se remodelado em saco plástico, e alçado um voo leve, na direção do frescor que soprava o vácuo dos carros ali.
Ele continuou sem entender.